Não. Não é notícia velha, embora a impressão seja essa para muitos que acompanham de perto a implantação da TV Digital no Brasil. É notícia fresquinha. Nessa sexta-feira, 9 de setembro, a Eletros, associação que reúne os fabricantes de TVs, revelou o envio ao novo governo brasileiro de uma carta pedindo o fim da obrigatoriedade do Ginga, o software 100% brasileiro que permite a interatividade da chamada TV aberta, gratuita, que recebe o sinal pelo ar, sem a necessidade de pagar uma assinatura.
O pedido acontece menos de um mês depois do novo ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Gilberto Kassab determinar que o modelo único de conversor de TV digital, que será pago pelas operadoras e distribuído gratuitamente aos beneficiários dos programas sociais do governo federal, inclusive os inscritos no Bolsa Família, inclua obrigatoriamente o Ginga. Em janeiro deste ano, por pressão das operadoras no Gired (Grupo de Implantação da TV Digital), moradores inscritos no Cadastro Único de Programas do Governo Federal da cidade de Rio Verde, cidade no interior de Goiás onde o fim da TV analógica chegou primeiro, receberam conversores de TV digital sem o software que permite acessar o recurso de interatividade, apenas com um seletor de canais, ou ‘zapper’, que de acordo com a Entidade Administradora do Processo de Redistribuição e Digitalização de Canais de TV e RTV (EAD), responsável pela gestão do processo de migração do sinal de TV no Brasil, atende plenamente a função de garantir que a população continue tendo acesso aos canais de TV aberta, após o desligamento do sinal analógico.
Os dois fatos estão intimamente ligados, dizem fontes do setor. E parecem realmente, já que os argumentos contrários ao Ginga, tanto da Eletros, quanto das operadoras, são rigorosamente os mesmos: um recurso que ninguém usa e que encarece o custo dos equipamentos de recepção, sejam eles televisores ou conversores.
De fato a interatividade é um recurso pouco usado na TV aberta. Situação que pode mudar agora, finalmente, se o governo mantiver o interesse de usar a interatividade da TV digital para ampliar o alcance dos serviços de governo eletrônico.
O Ginga tem muitos inimigos e um único aliado: o governo
Se você ouviu falar pouco do Ginga, não sabe exatamente o potencial da interatividade na TV aberta, isso se deve, em parte, à falta de interesse da própria indústria, que preferiu incentivar a produção de conteúdo, também pouco usado, para as Smart TVs. Sem interesse da indústria, as emissoras de TV também investiram pouco da interatividade. Temos apenas alguns poucos programas e telenovelas da Globo, e um portal do SBT, escondidos do público.
No início, não tinha aplicação porque não tinha receptor, não tinha receptor porque não tinha aplicação… A coisa começou a mudar quando o governo decidiu emitir uma portaria obrigando os fabricantes de televisores a embutir o Ginga em todas as TVs vendidas no país, e criou programas de incentivo ao desenvolvimento de aplicações interativas, embalado pela convergência dos mundos brodcast e broadband. Com o Ginga eleito pela União Internacional de Telecomunicações padrão para IPTV, começava a surgir um novo caminho, convergente, para a interatividade.
A indústria de recepção, que inclui os fabricantes de TV, tentou matar o sistema ainda lá no início da implantação da TV Digital, e não conseguiu. Depois, em 2011. E em 2012.
Com a proximidade do desligamento do sinal analógico, o governo foi forçado a definir regras para liberação do espectro de 700MHz, usado pelos radiodifusores. Nessa mesma época, o Brasil 4D, projeto piloto da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) financiado pelo Banco Mundial, ajudou a comprovar o uso da interatividade na TV aberta em projetos sociais do governo (fotos abaixo). O Brasil 4D ajudou a fazer com que, em 2015, as portarias sobre o apagão analógico passassem a contemplar a interatividade como recurso obrigatório dos conversores distribuídos para a população de baixa renda. Compromisso reafirmado no novo governo.
Segundo fontes próximas ao assunto com as quais conversei nesta sexta-feira, há mais ou menos três meses, quando as operadoras ensaiaram derrubar essa obrigação da portaria e colocar o zapper no lugar dos conversores interativos para cumprir a obrigação de não deixar nenhum brasileiro sem TV aberta a partir da liberação do espectro de 700Mhz para a telefonia celular, deputados da Frente Parlamentar pela Democratização das Comunicações, o Ministério Público e Tribunal de Contas da União (TCU) tiveram a sua quota de contribuição para que o ministro Kassab interviesse no sentido de manter a interatividade nos conversores, via Ginga.
Não por acaso, o professor André Barbosa, ex-EBC e responsável pelo programa Brasil 4D, desabafando em um post no Facebook, escreveu: “(…) só agora, depois da decisão do ministro Kassab de incluir o Ginga nas caixinhas conversoras para 12 milhões de famílias [o desenvolvimento de aplicações interativa] vai se tornar uma realidade viável”. A portaria de Kassab é de 26 de agosto. Confira abaixo o que diz o Anexo A.
O que mais ouço contra o Ginga é que não se cria mercado obrigando os fabricantes a instalarem um sistema. Concordo, em parte.
Como alguém que acompanha esse assunto há muito tempo, posso dizer que governo resistiu ao máximo à decisão de tornar o Ginga obrigatório. Somente nove anos após a edição do decreto que criou o SBTVD-T todos os aparelhos passaram a ter que trazer o Ginga. Só se chegou ao extremo da obrigatoriedade por culpa da própria indústria, que desprezou o sistema. Experimente entrar em uma loja que venda TV e perguntar ao vendedor o que significa aquele selo DTVi, colado na tela. Se der a sorte de topar com um que saiba explicar, peça para que demonstre a funcionalidade. Não se forma mercado sem educá-lo.
Na entrevista que comecei a fazer com o presidente da Eletros, Lourival Kiçula, neste sexta-feira, ouvi dele o mesmo argumento que ouvi de um representante das operadoras de telefonia: “O consumidor brasileiro paga por uma coisa que não usa”. Não usa porque não conhece, argumentei. “Não houve nenhuma divulgação por parte do governo”, rebateu Kiçula. Mas não cabia também aos fabricantes divulgarem o sistema? E aos radiodifusores, que desprezaram a interatividade na TV aberta enquanto puderam? E nunca chegaram a desenhar um modelo de negócio. Se preocuparam apenas em aumentar a qualidade de vídeo.
Além disso, tem razão André Barbosa quando diz em seu post no Facebook que “o processo de migração da TV Digital está começando de fato agora, o que faz com que tudo se torne perfeitamente possível com o aumento concreto na oferta de mais aplicativos e vídeos interativos por órgãos do governo federal, estadual e municipal, empresas públicas e privadas”.
Questionei Kiçula também sobre o valor de R$ 50 a mais no preço final de cada televisor, atribuído ao Ginga. Ele já cairá com a retirada da obrigatoriedade do Java na norma padrão de interatividade, perguntei. O presidente da Eletros ficou de enviar o a composição de custo detalhada do Ginga na segunda-feira, 12 de setembro. Mesmo dia em que o Gired se reúne e, com certeza, abordará o tema, uma vez que o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações já confirmou que está analisando o pedido da Eletros. Volto ao assunto assim que tiver as informações.
Não é segredo para ninguém que há eco na direção da EAD para o argumento de que a interatividade tem se mostrado uma ferramenta pouco útil para os integrantes do Cadastro Único. Uma pesquisa feita com esse público no município de Rio Verde, primeira cidade que teve o sinal analógico desligado no Brasil teria demonstrado isso.
A reportagem da Folha que revelou o pleito dos fabricantes também revelou o custo dos conversores gratuitos para a população de baixa renda. Diz que, até 2018, as operadoras gastarão cerca de R$ 2,2 bilhões na compra de 12,8 milhões de conversores. Cada um custa cerca de R$ 170, dos quais cerca de R$ 10 ficam com empresas que desenvolvem o Ginga. Mas, segundo apurei, a retirada do Java no Ginga, junto com a redução da memória RAM necessária e, de quebra, a retirada da saída HDMI do conversor, reduziu o custo unitário dos conversores para as operadoras de telefonia de aproximadamente US$ 20 para US$ 15,80. Só o licenciamento do Java (JVM Me) para a Oracle, que deixa de existir, significa uma economia de algo em torno de U$ 0,8 a U$ 1,5 por conversor. Mas isso significa que o custo total ainda está distante dos U$ 10 de cada zapper. É uma questão econômica. Acontece que o Ginga é o menor dos problemas. O grande vilão é a cotação do dólar. Para compensar, o negócio é cortar o que não interessa.
O mesmo vale para os fabricantes de TV, que viram o mercado encolher no primeiro trimestre do ano. Com a crise, o volume de vendas caiu 28% nos três primeiros meses de 2016, em relação ao mesmo período de 2015.Os números do segundo trimestre ainda não foram divulgados. Será que os jogos olímpicos ajudaram a compensar a queda de 4,37% da atividade econômica?
Entre os fabricantes e as operadoras a crença é a de que sem o Ginga, a distribuição da caixinha e a venda de TVs digitais poderia ser ampliada. Mas perderíamos a oportunidade de usar a TV como instrumento de política pública. E em tempos de BIG Data, convém o governo olhar com cuidado para o tamanho da oportunidade que pode estar jogando fora, caso abra mão do Ginga. Ainda mais agora que a EBC caminha para se tornar uma TV estatal.
Antes de qualquer coisa é recomendável que a EBC teste de fato as aplicações do Brasil 4D dirigidas aos beneficiários Cadastro Único de Programas do Governo Federal nas primeiras cidades onde o sinal analógico foi desligado. Invista em divulgação dos serviços disponíveis. Compartilhe conhecimento e treine os governos estaduais e municipais e fazerem uso da tecnologia, ainda que através de parcerias entre as diferentes esferas de poder. E ajude com as políticas para acesso a planos de banda larga móveis baratos, até mesmo subsidiados pelos governo, no modelo de tarifação reversa, para viabilizar o canalde retorno, uam vez que os conversores perderam a oportunidade de embutir um chip de telefonia (Edge, 3G/4g).
Como bem disse David Britto, da Totvs, em resposta a uma postagem no Facebook, “a TV Digital é a plataforma mais eficiente de distribuição de conteúdo e aplicativos que existe. Milhões de pessoas são simultaneamente beneficiadas por conteúdo gratuito a um custo extremamente baixo se comparado ao mundo IP. Nada foi feito ainda para explorar este potencial. Ela pode integrar-se facilmente ao mundo IP criando experiências inovadoras. Serviços de governo, como política de estado, podem e devem tirar proveito deste potencial para levar educação e informação aos cidadãos”.
O pecado do Ginga
Em seu post no Facebook, André Barbosa tangencia alguns pontos importantes sobre o futuro do middleware criado no país. Nos últimos anos, o sistema evoluiu bem como o middleware convergente por excelência para TV/Internet. Há quem diga que o Ginga abre as portas dos serviços OTT para o mundo broadcast. O que não interessa nem às teles, nem aos fabricantes de TV. Para que padronizar o mercado com um software aberto, se é possível usar padrões proprietários para assegurar uma receita extra?
Segundo André Barbosa, “o Ginga poderá ser usado como browser na próxima geração de TV Digital, que permitirá a total convergência com a Internet sem perder suas características de simultaneidade de recepção na transmissão da informação, sua gratuidade e especialmente a capacidade de transmitir dados, aplicativos e vídeos interativos de caráter educativo, de capacitação profissional e de serviços de saúde, movimentação bancária, de programas de habitação, saneamento, segurança ao lado dos serviços de Internet, com toda sua majestade e cujo interesse só tende a crescer até o limite dos interesses em jogo, alguns inconfessáveis e de resultados imprevisíveis”.
Vou além. André não disse, mas quem acompanha a área e os debates no Fórum Brasileiro de TV Digital, sabe que a substituição do Java pelo HTML 5 na especificação do Ginga despertou o interesse da Globo em usar o middleware como suporte para o Globo Play. Afinal de contas, dá trabalho manter o Globo Play em diferentes plataformas.
As três principais fornecedoras do Ginga, EiTV!, a Mopa e a Totvs (TQTVD) já trabalham com outras empresas para desenvolvimento de plataforma plataformas IBB (Integrated Broadband/Broadcast). Entre elas, estariam a EnterPlay (dona da primeira plataforma brasileira de streaming de vídeo) e a Intel.
A Intel tem estudado o uso do canal de dados da TV Digital como forma de ampliar a cobertura de banda larga para soluções de Internet das Coisas. E começa a ter interesse pelo Ginga para inclusão no seu PC Sticker. Tentei conversar com o diretor de Inovação da Intel Brasil, Max Leite, para detalhar esses projetos, mas não consegui. Fico devendo.
Posso apenas dizer que já ouvi do próprio Max que o o Brasil pode tirar proveito do fato de a TV Digital estar ampliando a sua cobertura para criar um novo canal de conectividade que possibilite soluções criativas de IoT e serviços para cidades inteligentes usando a mobilidade (3G/4G) como canal de retorno. O Ginga teria um papel importante na criação de um padrão aberto para conteúdo.
Na minha opinião, ser padronizado e ser aberto é hoje o maior dos pecados do Ginga. Para o bem ou para mal. Seja para acusar EiTV, Mopa e TQTVD de estarem tentando monopolizar o mercado, seja para possibilidade de ter todo um ecossistema padrão para desenvolvimento de aplicações que vão rodar na TV, sem pedir licença aos fabricantes de TV. E ter algo como um OTT para o mundo broadcast, transformando as empresas de telefonia em meras fornecedoras de canal de retorno.
Além do mais, matar o Ginga sem antes colocá-lo a prova de fato, divulgando as aplicações para que os consumidores decidam se devem ou não usá-lo (em especial a população de baixa renda que depende dos serviços de e-gov), se presta, se é útil, se é ruim. Ou, se como cheguei a ouvir, “o Ginga é mais uma jabuticaba sem uso”. A exclusão _ e a má divulgação _ priva o consumidor da opção de escolha. Não é a indústria de recepção, nem as operadoras, que devem determinar o que o consumidor quer. Está aí a TV 3D para não me deixar mentir. Se o mercado é soberano, o consumidor é o rei. Deixe-o experimentar e opinar.
Fonte: IDGNow